Minha Reflexão Cultural
Quando assisti ao filme dinamarquês Speak No Evil (2022), eu ainda morava no Brasil. Lembro claramente dos comentários nas redes sociais: “Nossa, mas essa família é muito ingenua, como ela pode confiar em alguém sem conhecer o outro?”.
Concordei à época, achando absurda a ideia de pessoas abrindo suas portas de casa para estranhos. No entanto, anos depois, ao me mudar para a Austrália, percebi como essa visão era limitada pela minha vivência brasileira.
Não sei em outros países, mas aqui, as pessoas confiam genuinamente no outro e acreditam na bondade alheia, vamos assim dizer. Essa mudança de perspectiva me fez revisitar o filme com outros olhos, tornando sua narrativa muito mais realista, perturbadora e assustadora.
Um Convite Que Não Deveria Ter Sido Aceito
Dirigido por Christian Tafdrup, Speak No Evil (2022) narra a história de Bjørn (Morten Burian), Louise (Sidsel Siem Koch) e sua filha Agnes (Liva Forsberg), uma família dinamarquesa que conhece Patrick (Fedja van Huêt), Karin (Karina Smulders) e seu filho Abel (Marius Damslev) durante uma viagem à Itália. A amizade entre as duas famílias parece surgir naturalmente, baseada em momentos agradáveis compartilhados durante o feriado.
Meses depois, Bjørn e Louise recebem um convite para visitar a casa de campo dos holandeses. Apesar de hesitar inicialmente, o casal dinamarquês aceita o convite, encarando-o como uma oportunidade de reviver os bons momentos e fortalecer a conexão com seus novos amigos.
Entretanto, o que começa como uma reunião acolhedora e cheia de camaradagem logo se transforma em uma experiência profundamente desconfortável. Pequenas atitudes dos anfitriões, que poderiam ser ignoradas em um contexto casual, começam a se acumular, criando um ambiente repleto de tensão silenciosa e mal-estar.
O filme é eficaz em retratar como situações inicialmente benignas podem gradualmente evoluir para algo sinistro. Desde a imposição de regras questionáveis até comportamentos que desafiam a etiqueta social, os holandeses testam os limites da paciência de Bjørn e Louise. A família dinamarquesa, no entanto, reluta em agir ou questionar, presa na armadilha da polidez e na esperança de que tudo não passe de um mal-entendido.
A Dinâmica Entre Confiança e Manipulação
O filme se destaca por suas personagens profundamente complexas e bem desenvolvidas. Bjørn é um homem que carrega um vazio emocional. Desde o primeiro encontro com Patrick, ele demonstra admiração por sua confiança e espontaneidade. Patrick representa tudo o que Bjørn gostaria de ser: assertivo, carismático e desinibido. Essa dinâmica cria uma relação de admiração platônica que obscurece a habilidade de Bjørn de perceber os sinais de alerta.
Louise, por outro lado, tem uma presença mais pragmática e cética. Desde o início, ela demonstra desconforto em relação às atitudes dos anfitriões, mas sua hesitação em confrontá-los é abafada pelo desejo de seu marido de manter as aparências. Patrick e Karin, os anfitriões, são um retrato assustador de manipulação passiva.
Eles criam uma atmosfera onde a maldade nunca é completamente evidente, mas permeia cada interação. Pequenos atos de provocação e desrespeito são estrategicamente planejados para desestabilizar os hóspedes sem provocar uma reação imediata.
Quando a Polidez se Torna Mortal
Algumas cenas em Speak No Evil (2022) são tão incômodas que é quase impossível assistir sem sentir um frio na espinha. Um exemplo é o jantar em que Patrick deliberadamente ignora a dieta vegetariana de Louise, oferecendo-lhe carne sem avisá-la. Esse ato, aparentemente inofensivo, simboliza a manipulação constante dos anfitriões, que testam os limites da educação dos hóspedes.
Outra cena marcante é o passeio de carro em que Patrick leva Bjørn para um local isolado, onde ambos gritam para liberar tensão. O que poderia ser um momento de alívio emocional se transforma em um presságio de que algo terrível está por vir. Esse equilíbrio entre o cotidiano e o macabro é o que torna o filme tão eficaz em provocar desconforto.
Uma Atmosfera Inquietante
A trilha sonora composta por Sune Kølster desempenha um papel crucial na construção da atmosfera do filme. Desde os primeiros momentos, as melodias orquestrais criam uma sensação de alerta constante, preparando o espectador para a escalada de tensão.
A fotografia de Erik Molberg Hansen é igualmente impressionante. Utilizando luz natural, ele captura a beleza bucólica da paisagem holandesa, criando um contraste desconcertante com os eventos sombrios que se desenrolam. Essa abordagem visual reforça o realismo do filme, fazendo com que o horror pareça ainda mais palpável.
Referências e Comparativos: Entre Haneke e Östlund
É impossível não traçar paralelos entre Speak No Evil (2022) e obras como Funny Games, de Michael Haneke, e Força Maior, de Ruben Östlund. Assim como Haneke, Tafdrup explora a violência psicológica de forma implacável, enquanto a ansiedade masculina e o desconforto social evocam a assinatura de Östlund. Essas referências enriquecem a experiência do espectador, oferecendo uma perspectiva mais ampla sobre as influências do filme.
Vale a Pena Assistir?
Speak No Evil (2022) não é um filme de terror convencional. Ele evita sustos fáceis e gore para oferecer uma experiência cerebral, que desafia o espectador a questionar seus próprios limites de tolerância.
Revisitar essa obra depois de vivenciar duas culturas tão distintas foi um experimento fascinante. No Brasil, onde a desconfiança é quase um instinto de sobrevivência, é difícil imaginar as decisões dessa família. Mas ao viver na Austrália, onde a confiança é parte do tecido social, percebi como Speak No Evil capta de forma brilhante as nuances culturais que moldam nossas escolhas e nos tornam vulneráveis ao desconhecido.
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